O Tempo Imortal das Páginas
Recentemente, li o encantador Livro das Horas, de Nélida Piñon, e uma escolha aparentemente simples no título me chamou atenção: a ausência do artigo definido “O”. Esse detalhe abre espaço para uma análise linguística profunda, pois a presença ou ausência de artigos pode transformar significativamente o sentido de uma expressão, revelando nuances de subjetividade e interpretação.
O artigo definido “O” tem a função de delimitar, de indicar que estamos diante de algo específico e determinado. Se o título fosse O Livro das Horas, sugeriria uma obra concreta, talvez de autoridade, com pretensões de universalidade. Ao omitir o artigo, no entanto, Nélida Piñon parece optar por uma abordagem mais aberta e abstrata. Livro das Horas torna-se, assim, um conceito mais fluido, menos rígido, permitindo que cada leitor construa sua própria relação com o tempo e a transitoriedade.
Essa ausência confere ao título um caráter mais universal. Em vez de apontar para um único livro, ele evoca uma multiplicidade de obras — reais ou imaginárias — que habitam o universo simbólico da literatura. A “hora”, por sua vez, deixa de ser uma medida exata e passa a representar os momentos e fases que compõem a experiência humana.
Do ponto de vista linguístico, essa escolha pode ser vista como uma estratégia de ampliação semântica. Ao retirar o artigo, Nélida inscreve o título em um plano filosófico, onde Livro das Horas não é uma obra fixa, mas uma categoria que representa a temporalidade em sua forma mais ampla. Essa indeterminação dialoga com o próprio conteúdo do livro, que se dedica a explorar as complexidades do tempo e da memória.
É nesse contexto que Nélida Piñon narra, de forma comovente, a morte de Clarice Lispector. Amiga íntima da escritora, Nélida descreve sua partida com uma sensibilidade poética tocante, revelando não apenas o impacto emocional da perda, mas também a essência do caráter de Clarice. A morte, ocorrida em 1977, é retratada quase como um rito lírico, e o relato se transforma em um momento de luto profundo e reflexão sobre a finitude da vida e o legado literário que permanece.
No livro, a morte de Clarice é apresentada como um evento suspenso no tempo — uma passagem que se entrelaça com os ritmos da literatura, da memória e da eternidade. A escrita de Nélida busca captar a transcendência da amiga, cuja obra, embora interrompida pela morte, continua viva na memória coletiva e na tradição literária brasileira.
Mais do que um relato factual, a narrativa é um testemunho da amizade entre duas grandes escritoras e, ao mesmo tempo, uma celebração da criação literária. O episódio da morte de Clarice torna-se um ponto de reflexão sobre o papel da literatura diante da morte e sobre o legado imortal das vozes que transcendem o tempo físico. A delicadeza com que Nélida aborda esse momento revela o profundo respeito e admiração que nutria por Clarice e por sua obra.
Por tudo isso, Livro das Horas é uma obra que merece ser lida e relida. A cada leitura, ela se revela de forma nova, mais rica, mais profunda. É um convite constante à reflexão sobre o tempo, a memória, a morte — e também sobre a própria literatura, sua capacidade de ultrapassar os limites da temporalidade e tocar os recantos mais íntimos da alma humana. Cada palavra de Nélida Piñon é como uma chave que abre portas para múltiplos significados. Revisitar suas páginas é viver uma experiência de leitura que, como o tempo, se reinventa. Este não é apenas um livro para ser lido, mas para ser vivido — em diferentes momentos da vida, sempre com algo novo a ensinar sobre as relações humanas, a literatura e a existência.